Análise Genética Bivariada de Gagueira e Disfluência em uma grande amostra de gêmeos com cinco anos de idade
Bivariate genetic analyses of stuttering and nonfluency in a large sample of 5-year-old twin
Catharina Eugenie Van Beijsterveldt , Susan Felsenfeld, Dorret Irene Boomsma
Journal of Speech, Language, and Hearing Research .Vol. 53 p.609-619 - June 2010
Síntese e comentários de Eliana Maria Nigro Rocha
FLUÊNCIA E MODELOS DE GAGUEIRA
Fluência é geralmente definida como uma habilidade complexa que reflete uma coordenação intrincada entre fatores intrínsecos e extrínsecos. A maioria dos modelos de desenvolvimento de fluência tem focado na identificação do conjunto complexo de fatores que são responsáveis pelo surgimento de gagueira na criança.
Starkweather (1990) descreve o modelo de demandas e capacidades, no qual pontua que, se a criança desenvolverá ou não gagueira, será determinado por um descompasso entre as capacidades internas da criança (nas áreas motoras da fala, linguísticas, cognitivas e emocionais) e as demandas internas ou externas colocadas sobre ela em momentos suscetíveis do desenvolvimento.
Outros modelos multifatoriais mais recentes acrescentaram detalhes referentes ao surgimento e manutenção da gagueira, inserindo novos fatores internos (como predisposição genética, processos neurofisiológicos, equilíbrio emocional) e externos (como demandas das situações, modelos de fala). Smith (1999) e Smith e Kelly (1997) propõem um modelo dinâmico e não linear de desenvolvimento de gagueira que enfatiza a interação entre variáveis orgânicas (emoção, linguagem, cognição) e contextos comportamentais.
DeNil (1999) sugere que a gagueira ocorre em três níveis que influenciam e transmitem informações uns aos outros: um nível de processamento que envolve múltiplos eventos neurofisiológicos, um nível de execução que contém comportamentos observáveis (fala, desempenho motor) e um nível contextual (ambiental) que modula a expressão do comportamento de diferentes modos em diferentes momentos. Os fatores externos (como estresse) podem exercer uma influência nos processos neurofisiológicos centrais do indivíduo que por sua vez podem afetar diretamente um ou mais comportamentos observáveis (como fluência, reações de ansiedade)
Conture (2006) descreve um modelo interativo para explicar o desenvolvimento da gagueira, que ele chamou de modelo comunicação-emocional. Haveria fatores causais contribuintes, tanto proximais como distais que são mediados pela reatividade emocional e pelos processos regulatórios pré-frontais. Os fatores distais seriam a predisposição genética e os processos ambientais tanto os compartilhados como os não-compartilhados que debilitam a fluência. Esses fatores interagiriam entre si, trazendo dificuldades para o planejamento da fala e da linguagem e possivelmente para a produção da fala, que seria o fator proximal e que contribuiria diretamente para a fala gaguejada. Conture e colaboradores argumentam que existe uma relação fundamental entre planejamento e produção de comunicação com as reações e regulação emocionais. Na visão desses autores as rupturas da linguagem e da fala proximal são filtradas através das reações emocionais e do temperamento da criança e essas conexões se tornam fortalecidas com a repetição da experiência.
ESTUDOS COM GÊMEOS EM GAGUEIRA
Os modelos teóricos compartilham da convicção de que a gagueira se desenvolve como resultado da complexa interação entre a carga genética e o ambiente. Para estabelecer a contribuição relativa de cada um desses fatores, estudo com gêmeos é a metodologia de escolha.
Desde 1990 muitos desses estudos têm sido efetuados, revelando de moderados a altos índices de hereditariedade, tanto para crianças como para adultos.
Se o estudo com gêmeos for bem abrangente, é possível distinguir e quantificar, nas semelhanças entre os membros da família, os efeitos do ambiente compartilhado (como o familiar) e dos genes compartilhados. As diferenças entre gêmeos que foram criados juntos devem ser atribuídas a fatores ambientais não-compartilhados (eventos individuais) e – com exceção dos gêmeos idênticos – a genes não-compartilhados.
As variáveis ambientais compartilhadas (excessiva preocupação dos pais com falhas na fala, um estilo de vida competitivo ou perfeccionista, fala acelerada e complexa...) têm sido inseridas na etiologia da gagueira em um momento ou outro. Mas, curiosamente, nos estudos com gêmeos realizados até agora os efeitos significativos não relacionados à genética têm sido atribuídos ao ambiente não-compartilhado, com os efeitos do ambiente compartilhado sendo regularmente não significantes.
VISÃO GERAL SOBRE ANÁLISE GENÉTICA
Os gêmeos monozigóticos (MZ) são geneticamente idênticos. Já os gêmeos dizigóticos (DZ) têm em comum cerca de 50% de seus genes. Parte-se do pressuposto que eles dividem o mesmo ambiente familiar. Qualquer diferença entre os MZ é considerada decorrente de fator ambiental não-compartilhado (embora possa haver alguma diferença genética ou epigenética entre eles.)
O modelo utilizado para o estudo é o ACE: A sendo relativo aos fatores genéticos, C aos fatores ambientais compartilhados e E aos fatores ambientais não-compartilhados.
RESULTADOS
Um terço das crianças desse estudo já apresentava fluência estável aos cinco anos.
A prevalência geral para gagueira foi de 4%.A relação entre os gêneros foi de 1.5 meninos para uma menina.
A prevalência para disfluência intensa foi de 4,3%, com relação menino-menina de 1.7: 1.
A correlação entre MZ e DZ sugere que os fatores genéticos estão envolvidos nos dois fenótipos, mas a importância dos fatores ambientais compartilhados também é evidenciada.
Houve uma concordância mais alta para gagueira entre MZ do que DZ e os efeitos genéticos foram interpretados como moderados.
Não houve diferença significativa entre os gêneros no que se refere aos fatores genéticos e ambientais, tanto para gagueira como para disfluência intensa.
Tanto o fator genético como os fatores ambientais compartilhados provavelmente desempenham um papel nos dois fenótipos de fala.
Para a gagueira, a influência relativa do fator genético foi de 42% enquanto a influência dos fatores ambientais compartilhados foi de 44%.
Para a disfluência intensa esses fatores foram de 45% e 32% respectivamente.
O restante da variação (23% e 14%) foi atribuído aos fatores ambientais não-compartilhados.
Encontrou-se considerável sobreposição entre os fenótipos de gagueira e disfluência intensa, com 342 crianças (25% das que possuíam alguma alteração na fluência) apresentando ambos os fenótipos.
Testes subsequentes revelaram que os mesmos genes contribuíram para os dois fenótipos.
Temos também que os mesmos fatores etiológicos influenciaram ambos.
A correlação entre os dois fenótipos foi considerada devida a fatores genéticos em 46% dos casos, devida a fatores ambientais compartilhados em 33% dos casos e a fatores ambientais não compartilhados em 21% dos casos.
DISCUSSÃO
O resultado das análises indicou que ambos os fenótipos eram moderadamente hereditários e que havia uma significante contribuição do ambiente compartilhado. A correlação fenotípica entre as duas modalidades de alteração de fluência foi alta. Esta correlação era devida à sobreposição de fatores genéticos e ambientais.
Estes achados dão suporte aos recentes modelos que têm enfatizado a importância da complexa interação entre fatores genéticos e não genéticos no desenvolvimento de gagueira. Os resultados sugerem que na disfluência intensa, tanto a influência ambiental como a genética são importantes e similares para meninos e meninas. Assim, embora sejam necessários mais estudos, parece que o quanto fluente ou disfluente nós nos tornamos, pode ser, ao menos moderadamente, influenciado por nossos genes.
Para as crianças da casuística com provável gagueira, tanto o parâmetro genético como o parâmetro de ambiente compartilhado foram significantes e semelhantes para meninos e meninas. O parâmetro estimado foi 42% e 44% respectivamente.
A hereditariedade estimada é menor do que a encontrada em estudos prévios com gêmeos: 83% para gêmeos japoneses de 10 a 15 anos e 65% para gêmeos de 4 anos de idade do Reino Unido. O oposto ocorreu em relação ao parâmetro relacionado ao ambiente compartilhado, que foi considerado não significante nos estudos citados acima.
Existem várias explicações possíveis para essas diferenças.
- uma vez que o tamanho da amostra deste estudo foi maior do que nos estudos anteriores, este pode ser o primeiro estudo que pode detectar a significante contribuição do ambiente compartilhado para o fenótipo de gagueira.
- ao contrário dos estudos citados, nos questionários deste estudo não foi incluída a palavra "gagueira". Assim, o presente estudo não está testando diretamente a hereditariedade de um distúrbio de fluência clinicamente diagnosticado, mas examinando a hereditariedade a partir dos relatos dos pais sobre comportamentos específicos que são considerados alertas para a gagueira.
- os autores citam DeThorne, Petrill, Hayiou-Thomas, and Plomin (2005) que referiram que, conforme aumenta a severidade do distúrbio nos grupos de pesquisa, a hereditariedade parece aumentar e a relevância do fator ambiental parece diminuir.
- é provável ainda, que a pesquisa atual tenha incluído entre seus participantes, muitos que se recuperarão da gagueira, e talvez da disfluência intensa, conforme amadureçam.
SOBRE GAGUEIRA E DISFLUÊNCIA INTENSA
A hipótese clássica da continuidade (Bloodstein, 1970) colocava a gagueira como um distúrbio clínico que era, em grande parte, um degrau mais extremo de certas formas da disfluência normal. A sobreposição que os autores deste estudo encontraram entre gagueira e disfluência intensa foi substancial, embora não completa. No entanto, também existem tanto influências genéticas como ambientais específicas a cada um desses dois fenótipos.
As crianças que gaguejam e as que apresentam disfluência intensa têm sido vistas como pertencendo a categorias diferentes e esforços recentes tem sido realizados para examinar áreas de similaridade potencial entre estes comportamentos. É possível que, aprendendo mais sobre crianças intensamente disfluente, nós possamos identificar fatores de risco nesse grupo subestudado e possamos desenvolver avaliações e métodos de intervenção que possam ajudar a criança que gagueja.
LIMITAÇÕES AO PRESENTE ESTUDO
Este não foi um estudo de distúrbio de fluência clinicamente diagnosticado.
É possível que, para um número desconhecido de casos, os índices de fluência obtidos não sejam acurados, pelas questões não terem sido corretamente interpretadas pelos pais. Pode ainda ser que um grande número da amostra tendeu a superestimar ou subestimar os comportamentos disfluentes em seus filhos, o que teria aumentado a similaridade entre MZ e DZ, que por sua vez, aumentaria a estimativa de ambiente compartilhado.
CONTINUIDADE DO ESTUDO
Ainda se desconhece se os mesmos genes e/ou fatores ambientais contribuem para a possibilidade de recuperação versus persistência do distúrbio. Os gêmeos deste estudo serão acompanhados longitudinalmente e foram incluídas questões sobre gagueira nas pesquisas das quais eles participarão aos 14 e 16 anos. Talvez então os autores possam ter dados que contribuam para abordar essa questão.
OBSERVAÇÕES SOBRE ESTA SÍNTESE:
Reiteradamente ao ser referir à genética os autores especificam se tratar de um "efeito aditivo genético", ou seja, o mecanismo através do qual o efeito combinado de alelos genéticos em dois ou mais locais do gene é igual à soma de seus efeitos individuais. Para facilitar a leitura foi utilizado apenas o termo "genético"
De modo semelhante, ao se referir à gagueira, os autores usam o termo "provável gagueira", uma vez que a mesma não foi diagnosticada clinicamente, mas se baseia em relatos dos pais e também porque a amostra estudada é composta por crianças de cinco anos de idade, faixa etária na qual a gagueira ainda pode ser considerada passageira.
COMENTÁRIOS SOBRE ESTA SÍNTESE:
Considero de grande importância estudos como este que focam a faixa etária na qual pode ser encontrada a gagueira em sua fase incipiente. Sem dúvida, os riscos inerentes ao abordar esta idade são grandes, como os próprios autores ressaltam dizendo da possibilidade de termos dentro da amostra um grande número de crianças que poderá ter uma reversão no quadro. Mas, é nesta idade que poderemos encontrar dados que nos auxiliem a obter abordagens cada vez mais direcionadas à real dificuldade dessas crianças e que possam focar eventuais alterações que se encontrem na base de um quadro de gagueira.
O questionamento que os autores se fazem sobre as identificações subjacentes entre gagueira e disfluência intensa tem nos preocupado há inúmeros anos. Eles deram início a um enquadre científico a essa questão que até então era apenas teórica, praticamente filosófica, e que parecia pouco possível abordar de modo objetivo.
Como os autores citam, outros estudos demonstram um peso bem maior do fator hereditário. Seria interessante um grande estudo que analisasse profundamente e integrasse os achados de todas as publicações semelhantes e pudesse clarear ainda mais essa questão.
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