Trajetórias do Desenvolvimento Cerebral
Trajetórias do Desenvolvimento Cerebral associadas à Persistência e Recuperação da Gagueira Infantil
Brain developmental trajectories associated with childhood stuttering persistence and recovery
Ho Ming Chow, Emily O. Garnett, Simone P.C. Koenraads, Soo-Eun Chang
Developmental Cognitive Neuroscience, 60 (2023)
Tradução e seleção de excertos de Eliana Maria Nigro Rocha
Abreviaturas utilizadas nesta síntese:
CGP - crianças com gagueira persistente, CGR - crianças com gagueira recuperada, CQG - crianças que gaguejam, FA - Fascículo Arqueado1, FLI - fascículo longitudinal inferior, FLS - fascículo longitudinal superior, GDP - gagueira desenvolvimental persistente, NB – núcleos da base, NBTC - núcleos da base-tálamo-córtex2, VSB - volume de substância branca, VMC – volume da massa cinzenta.
Este é um estudo longitudinal da gagueira infantil, comparando:
- crianças com gagueira persistente (CGP)
- crianças que se recuperaram da gagueira (CGR)
- crianças fluentes
Busca examinar as trajetórias de desenvolvimento do volume de massa cinzenta (VMC) e do volume de substância branca (VSB) usando morfometria baseada em voxel.[3-7]
Foram analisadas 470 ressonâncias magnéticas de 95 crianças que gaguejam (CQG): (72 CGP e 23 CGR) e 95 crianças fluentes entre 3 e 12 anos de idade. As crianças deste estudo foram avaliadas e escaneadas anualmente por até 4 anos.
Anomalias estruturais e funcionais no sistema neural motor esquerdo da fala, incluindo o giro frontal inferior, giro temporal superior posterior, circuito dos núcleos da base-tálamo-córtex (NBTC) e o cerebelo, têm sido associadas com gagueira (veja Chang et al., 2019 para revisão). Além das anomalias da substância cinzenta, descobriu-se que as crianças que gaguejam têm menor volume de substância branca (VSB) bilateralmente no fórceps menor do corpo caloso (Beal et al., 2013), enquanto outro estudo não encontrou diferenças significativas (Choo et al., 2012). Vários estudos de imagem por tensor de difusão relataram repetidamente que a difusividade anisotrópica no corpo caloso e no fascículo longitudinal superior esquerdo /fascículos arqueados (FLS / FA) é menor em crianças e adultos que gaguejam do que em controles que não gaguejam (Neef et al., 2015; Chow and Chang, 2017) sugerindo que a integração sensório-motora e as conexões inter-hemisféricas podem estar afetadas na gagueira.
“Crianças que desenvolvem gagueira crônica persistente podem ser aquelas que, ao serem comparadas com crianças que não gaguejam, apresentam, no surgimento da gagueira, diferenças neuroanatômicas, que não são resolvidas à medida que elas crescem e continuam a gaguejar. Mudanças desadaptativas podem ocorrer em áreas cerebrais à medida que a gagueira se torna crônica. Em crianças que se recuperam de gagueira, por outro lado, pode ocorrer a normalização e/ou compensações exitosas para déficits anteriores associados ao início da gagueira.”
O grupo recuperado exibiu aumentos, relacionados à idade, em alguns tratos (por exemplo, o corpo caloso), enquanto o grupo persistente apresentou um platô ou mesmo uma diminuição da integridade da substância branca com o decorrer da idade.
O estudo de Chow e Chang (Chow e Chang, 2017) é o único estudo longitudinal até o momento que examinou as diferenças neuroanatômicas que ocorrem ao longo do desenvolvimento em grupos persistentes e recuperados de CQG. Esse estudo limitou-se a examinar a substância branca, portanto, atualmente não se sabe quais anomalias da substância cinzenta podem estar presentes perto do início dos sintomas e, além disso, se as alterações da substância cinzenta relacionadas à idade diferenciam crianças que persistem versus as que se recuperam da gagueira.
Não está claro neste momento se esses déficits ocorrem próximo ao início do distúrbio e se a recuperação da gagueira está associada à normalização dos déficits no loop NBTC ou então às compensações por outras estruturas, como o cerebelo, uma área que parece desempenhar um papel compensatório em resposta a possíveis déficits centrais nos núcleos da base (Alm, 2004; Kotz et al., 2009; Petacchi et al., 2005).
Na varredura inicial, as CGP, CGR e fluentes não diferiram significativamente em relação a gênero, idade ou status socioeconômico. Na entrevista inicial não houve diferenças significativas entre CGP e CGR em termos da idade de início da gagueira ou na gravidade da gagueira.
Diferenças significativas entre CGP e controles foram encontradas no VMC e no VSB.
Na idade pré-escolar (3-5 anos), CGP exibiram VMC e VSB reduzidos em determinadas regiões cerebrais em comparação com os controles.
Quanto à trajetória do desenvolvimento nesta faixa etária pré-escolar, foram observadas diferenças apenas no VSB, mas não no VMC. Já na faixa etária escolar, o VMC no tálamo foi significativamente reduzido em CGP em comparação com o grupo controle.
No grupo em idade pré-escolar, o VSB em algumas regiões cerebrais foi negativamente associado à gravidade da gagueira, mas nenhuma associação significativa desse tipo foi encontrado para o VMC. Em contraste, no grupo em idade escolar, associação significativa com a gravidade da gagueira foi encontrada apenas em áreas de substância cinzenta.
Enquanto a persistência da gagueira foi associada principalmente à diminuição do VMC e VSB ou à uma taxa de crescimento atenuada nas estruturas motoras da fala, a recuperação da gagueira foi associada principalmente ao aumento da taxa de crescimento do VSB nos tratos que conectam essas estruturas, sugerindo que esses aumentos refletem um processo de compensação dos déficits neurais na gagueira.
As anomalias estruturais associadas à gagueira persistente não são estáticas; eles podem se desenvolver em conjunto com a progressão do distúrbio. Por outro lado, reverter esse desenvolvimento anômalo do cérebro ou melhorar o processo compensatório pode reduzir a gravidade da gagueira ou mesmo facilitar a recuperação.
Não foi encontrada diminuição do volume no NB e no tálamo em CGR quando compararadas com os controles, diferente do que foi observado nas CGP. Essa diferença qualitativa pode indicar que as causas da gagueira em CGP e CGR têm diferentes origens neuroanatômicas. No entanto, a comparação direta entre CGP e CGR não mostrou nenhuma diferença de grupo significativa nessas áreas subcorticais. O CGR pode apresentar déficits mais confinados associados às conexões corticoestriatais, enquanto o CGP pode ter anomalias mais difundidas em toda a rede NBTC. No entanto, também é possível que os déficits associados ao NB e ao tálamo tenham se resolvido na idade pré-escolar das CQG ou que não tenhamos poder estatístico suficiente para detectar o déficit devido ao pequeno número de CGR no estudo atual.
Uma diferença marcante entre CGP e CGR é que a taxa de crescimento foi significativamente maior em várias áreas da substância branca para CGR, enquanto que foi observado diminuição do volume ou da taxa de crescimento nas CGP em idade pré-escolar e escolar, inclusive na corona radiata esquerda, o corpo caloso, FLS e o FA esquerdo.
Estudo anterior (Chow, H.M., Chang, S.E., 2017) sugere fortemente que os aumentos da VSB fundamentam uma possível normalização ou processo compensatório associado à recuperação natural da gagueira.
Um aumento da taxa de crescimento no pedúnculo cerebelar bilateral ao redor do núcleo denteado também foi observado em CGR. Esse é um resultado interessante porque, diferentemente de outras áreas de SB que mostram aumento na taxa de crescimento da SB em CGR, uma diminuição do volume ou da taxa de crescimento no pedúnculo cerebelar bilateral ao redor do núcleo denteado não foi observado em CGP. Ao invés disso, aumento da taxa de crescimento no pedúnculo cerebelar direito ao redor do núcleo dentado, bem como do corpus caloso foi encontrado nas CGP em idade escolar, mas a extensão espacial é menor que a observada nas CGR. Isso pode indicar que o aumento da taxa de crescimento no pedúnculo cerebelar está relacionado a um processo compensatório incompleto associado à gagueira, independentemente da persistência ou recuperação.
O volume crescente do pedúnculo cerebelar também indica o envolvimento do cerebelo no processo compensatório. Esta noção é ainda mais fortalecida pela observação da associação negativa entre o lóbulo VI do cerebelo direito e a severidade da gagueira na idade escolar.
No geral, nossos resultados indicam que o cerebelo pode dar suporte ao aumento da fluência, mas é insuficiente para atingir a recuperação completa da gagueira. Em vez disso, conforme discutido em uma seção anterior, a recuperação da gagueira pode exigir compensação envolvendo o laço NBTC.
O modelo DIVA [8] (Guenther, 2016, 2006), ao teorizar sobre possíveis deficiências na gagueira desenvolvimental persistente (GDP), propõe três possíveis localizações de deficiências no loop NBTC (também descrito em Chang e Guenther, 2020). A primeira está nos núcleos da base propriamente ditos (GDP-1), a segunda são as projeções corticoestriatais do córtex cerebral para os núcleos da base (GDP-2) e a terceira é a rede de regiões corticais que processam aspectos cognitivos e sensório-motores da fala (GDP-3). O achado atual da presença precoce de VMC diminuído no putâmen e núcleo accumbens em CGP suporta GDP-1, e o VSB diminuído que parece se cruzar com os tratos corticoestriatais dentro das fibras de projeção motora e o corpo caloso suporta GDP-2. Além disso, também foram encontradas evidências de GDP-3, especificamente relacionadas às reduções de VSB observadas nas áreas frontal inferior, FLS e FA/FLI no hemisfério esquerdo. Essas reduções do VSB podem refletir a diminuição da eficiência ou a subutilização das conexões frontotemporais esquerdas que permitem a integração auditivo-motora necessária para o controle motor da fala fluida. No geral, nossos resultados suportam todas as três possibilidades propostas por Guenther (2016).
Guenther (2016) questionou se a conectividade corticoestriatal enfraquecida, observada na CQG, era uma consequência secundária de comprometimento em outro lugar, e não a causa raiz da gagueira, uma vez que esse achado não foi encontrado de forma consistente em adultos que gaguejam.
A observação atual de VMC significativamente reduzido no putamen e no núcleo accumbens nos estágios iniciais da gagueira (na CQG em idade pré-escolar) é um achado novo que dá suporte ao papel crucial dos núcleos da base e do sistema de dopamina na fala e na gagueira (revisto em Alm, 2021).
O sinal de dopamina do Sistema Nervoso Central para o putamen codifica o tempo e o início (ou seja, se e quando) dos movimentos planejados (Howe e Dombeck, 2016; Klaus et al., 2019), enquanto o sinal de dopamina da área tegmental ventral para o núcleo accumbens codifica a força ou vigor de movimentos motivados (Hughes et al., 2020); Revisado em (Alm, 2021).
A variabilidade situacional da gagueira e, em particular, a observação de pouca ou nenhuma gagueira ao falar consigo mesmo, é relevante aqui, pois pode estar relacionada à diferença na atividade dopaminérgica que afeta a função estriatal e a conectividade com áreas cerebrais que essas estruturas estriatais fazem interface durante a fala em ambientes sociais versus fala que não é direcionada a um objetivo.
As altas demandas metabólicas do sistema dopaminérgico durante os períodos dinâmicos do neurodesenvolvimento, aliadas a possíveis déficits nas conexões entre os circuitos que possibilitam o aprendizado e a execução de sequências motoras automatizadas como é o caso da fala, podem estar alteradas na gagueira, tendo seu início próximo ao surgimento da gagueira.
O núcleo denteado cerebelar atua no tálamo, que se projeta para áreas motoras corticais que se conectam aos núcleos da base. Isso forma uma rede que liga os circuitos cerebelar, auditivo e frontal-estriatal, dando suporte à aquisição das rotinas motoras básicas (Akkal et al., 2007; Dum e Strick, 2003)
No caso da gagueira, especulamos que déficits estruturais no putâmen estriatal poderiam afetar negativamente a aquisição de rotinas básicas de fala que são codificadas eficientemente por meio de sua estrutura temporal. A aquisição ineficiente dessas rotinas motoras da fala pode levar ao aumento da demanda por monitoramento sensorial constante e ação corretiva que envolve as redes cerebelares em crianças que gaguejam. No presente estudo, maior VSB ao redor do núcleo denteado nos pedúnculos cerebelares foi observada tanto na CQG persistente quanto na recuperada, mas isso foi particularmente maior na CGR e esse padrão aumentou com a idade. A maior VSB nessa área pode indicar um desenvolvimento compensatório de fibras eferentes ao longo da alça dentato-talamocortical cerebelar. Esse desenvolvimento parece ser insuficiente por si só para levar à recuperação, mas pode suportar um importante aumento funcional para compensar o déficit no NBTC. Esses achados destacam a importância de considerar o papel do processamento temporal na fisiopatologia da gagueira.
Embora tenhamos acompanhado nossos participantes por até 4 anos, é possível que alguns dos CGP incluídos em nosso estudo possam se recuperar mais tarde na infância ou adolescência. No entanto, as chances de recuperação tardia devem ser uma minoria (Yairi e Ambrose, 1999) e não se espera que alterem significativamente os presentes achados.
É provável que existam vários fatores biológicos, cognitivos e ambientais que influenciam o desenvolvimento anômalo das substâncias cinzenta e branca em crianças que gaguejam que necessitarão de maiores análises no futuro. Estudos anteriores relacionaram fatores comportamentais e demográficos como potenciais preditores de persistência da gagueira, como precisão do som da fala, níveis de linguagem expressiva/receptiva e frequência da gagueira (Singer et al., 2020, 2022), o nível de desempenho em repetição de não-palavras (Spencer e Weber-Fox, 2014), tempo transcorrido desde o início (Yairi e Ambrose, 1999) e história familiar de gagueira persistente (Singer et al., 2020; Walsh et al.,2018).
CONCLUSÃO
Diferenças regionais de volume de substância cinzenta e branca em todo o cérebro foram examinadas em CQG em idade pré-escolar e escolar (tanto gagueira persistente quanto recuperada) em comparação com pares da mesma idade, no maior conjunto de dados de ressonância magnética coletados para esta população clínica até o momento. As varreduras coletadas longitudinalmente, que abrangeram até quatro anos por participante, permitiram o rastreamento de trajetórias de desenvolvimento diferenciadas entre os grupos. Os resultados fornecem amplo suporte para um possível déficit da rede NBTC começando na fase inicial do distúrbio (idade pré-escolar), envolvendo o putâmen, núcleo accumbens, giro frontal inferior/córtex pré-motor vental esquerdo e tratos corticostriatais. Os déficits nas regiões de entrada da rede NBTC parecem afetar as regiões de saída da rede, incluindo o tálamo, em fases posteriores da gagueira (idade escolar). Os dados atuais também fornecem informações sobre as bases neurais da recuperação natural da gagueira durante a infância. As crianças que se recuperaram da gagueira mostraram aumento do VSB nas fibras de projeção motora, FA esquerdo, corpo caloso e pedúnculo cerebelar ao redor dos núcleos denteados, sugerindo a normalização ou compensação bem-sucedida dos déficits neurais ligados à gagueira. Aumentos de volume semelhantes, no corpo caloso e pedúnculo cerebelar, também foram observados em CGP, indicando uma compensação incompleta. Esses resultados fornecem novos insights substanciais sobre as possíveis bases neurais do início, persistência e recuperação da gagueira durante a infância.
INSERÇÕES QUE BUSCAM CLAREAR ALGUNS DETALHES DO TEXTO:
[1] Fascículo Arqueado
[2] Gânglios da Base
[3] “Atualmente, um grande número de métodos de Visão Computacional vem sendo desenvolvido para caracterizar as diferenças neuroanatômicas “in vivo” usando imagens de ressonância magnética estrutural (RM).
Um destes métodos é a morfometria-baseada-em-voxel (MBV) [4] que compara voxel a voxel [5] diferentes imagens de RM do cérebro. Sabe-se que a utilização do método adequado depende obviamente do tipo de diferenças que se espera encontrar entre as imagens. O método MBV é comumente utilizado para detecção de diferenças localizadas nas imagens cerebrais segmentadas em regiões de substância cinzenta, substância branca e líquido céfalo raquidiano (LCR).”
Aguiar N A O et al (2007). Análise de imagens cerebrais utilizando o método MBV- Otimizado.
Acessado em: https://fei.edu.br/~cet/relatorio_tecnico_012007.pdf
[4] “Morfometria refere-se à análise quantitativa da forma, que é um conceito que abrange tanto o tamanho quanto a forma de um organismo ou órgão.”
Métodos de Aquisição, Métodos e Modelagem
J. Ashburner, G.R. Ridgway, em Brain Mapping, 2015
[5]“Um voxel representa um valor em um gride regular em um espaço tridimensional. O nome voxel é um portmanteau (neologismo com origem na mistura de palavras) de "volume" e "pixel". E pixel é uma combinação, na língua inglesa, das palavras "picture" e "element", ou seja, elemento da imagem.
Acessado em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Voxel
[6] “O voxel é equivalente a pixel em 3D e representa uma abreviação para ‘volume element’.” https://treinamento24.com/library/lecture/read/154285-o-que-e-um-voxel
[7]“A menor unidade em espessura na imagem tomográfica é o voxel, o qual é definido antes da aquisição da imagem e pode ser alterado, em busca de imagens tomográficas que proporcionem uma melhor nitidez e contraste de estruturas anatômicas e processos patológicos. ”
Coelho C e Flores PS (2013). Influência do tamanho do voxel na qualidade de imagem tomográfica: revisão de literatura. RFO UPF vol.18 no.3
[8] O modelo DIVA de produção de fala fornece uma explicação computacional e neuroanatomicamente explícita da rede de regiões cerebrais envolvidas na aquisição e produção da fala.
The DIVA model: A neural theory of speech acquisition and production
Jason A. Tourville and Frank H. Guenther (2011) - Lang Cogn Process.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3650855/
Quer saber ainda um pouco mais?
Leia o original: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1878929323000294?via%3Dihub