Eliana Maria Nigro Rocha

 e-gagueira.com.br

Consciência e Reações de Crianças de 2 a 7 anos em relação à sua fala disfluente


Síntese e comentários efetuados por Eliana Maria Nigro Rocha  
Este texto foi originalmente publicado no site do Instituto Brasileiro de Fluência – IBF para o Dia Internacional de Atenção à Gagueira de 2010:
acesse aqui.

 

 

Texto original: Awareness and reactions of young stuttering children aged 2–7 years old towards their speech disfluency - Boey RA, Van de Heyning PH, Wuyts FL, Heylen L, Stoop R, De Bodt MS. J Commun Disord. 2009 Sep-Oct;42(5):334-46. Centre of Stuttering Therapy Antwerp, University of Antwerp, Belgium. 

 

 

          A consciência da criança a respeito de sua fala disfluente era vista anteriormente (JOHNSON,1959) como a causa da gagueira, de modo que se considerava que uma disfluência normal de fala poderia se transformar em gagueira caso as reações dos pais tornassem a criança consciente de suas dificuldades de fala.           
          Atualmente essa consciência é percebida como
um fator que interage no início e desenvolvimento da gagueira.     
          Para avaliar a consciência da gagueira em crianças pequenas, os pesquisadores, de um modo geral, têm se utilizado de uma destas três fontes:


- informações dos pais sobre o que seus filhos dizem a respeito da gagueira  
- observação da criança durante seus momentos de gagueira    
- tarefas de identificação com diferentes modelos de fala      

    
          Como resultado de um destes estudos (VANRYCKEGEM ET AL, 2005), foi obtido um gráfico, que relaciona a porcentagem de crianças que têm consciência de sua gagueira com a idade em que esta consciência foi constatada:

 

 

 

          Nesse gráfico pode-se observar que mais de 50% das crianças com dois anos de idade estão conscientes de sua fala disfluente e que isso segue crescendo, de modo que cerca de 90% daquelas com sete anos tem essa consciência.


          A partir desses dados, os autores do presente artigo decidiram pesquisar a consciência da gagueira relacionada à idade cronológica da criança, mas analisando também a interferência do tempo decorrido desde o início da gagueira, as diferenças de gênero, a severidade da gagueira e as diferenças culturais (uma vez que analisaram crianças holandesas).   
         
O estudo avaliou 1122 crianças, com idade entre 2 anos e 7 anos e 11 meses. Havia 850 meninos e 272 meninas.


          A entrevista com os pais foi dividida em três momentos: 
- foco na gagueira: características, início e desenvolvimento – inclusive questões sobre consciência sobre a gagueira.           
- foco na saúde: marcos do desenvolvimento, características de personalidade e de comportamento
- foco nos dados demográficos e no ambiente social: constituição familiar, educação, escolaridade, etc.

          Para podermos entender melhor como esse estudo levantou esses dados, vejamos as questões que foram formuladas aos pais sobre a consciência de seus filhos em relação às suas falas:

 

(a)  Como seu filho reage às dificuldades de fala? (questão aberta)      
(b)  Você acha que ele está consciente sobre o problema de fala? (sim/não/em dúvida/ não sei)       
(c)  Caso positivo, como você sabe? (questão aberta)      
(d)  Os pais foram questionados sobre os itens que seguem para averiguar as diferentes possibilidades de suas observações:    
           (d1) os pais têm certeza sobre a consciência e reação da criança em relação à fala por causa das expressões da criança (ex: suspira, arregala os olhos...)      
           (d2) durante um momento de gagueira, a criança pára de falar e evita a situação         
           (d3) a criança faz uma observação sobre sua fala (ex: Minha boca não funciona direito. Eu gaguejo. Eu não consigo mais falar. Tem uma coisa presa na minha garganta, etc.)
           (d4) a criança chora por causa da dificuldade de fala.     
           (d5) a criança se torna muito impaciente com sua fala (ex: a criança diz “Ah, não! Sempre a mesma coisa”, interrompendo um momento de gagueira, estalando a língua com sentido de desagrado e balançando a cabeça.)         
           (d6) A criança pede ajuda (ex: Eu não consigo falar direito, o médico pode me ajudar? Você pode me dar um remédio para me ajudar a falar logo?). Esses exemplos se referem a crianças pequenas com menos de 48 meses de idade.      
           (d7) Logo após um momento de gagueira, a criança deliberadamente começa a gaguejar, exagerando a severidade e duração. A criança começa a fazer palhaçadas enquanto gagueja.

 

           O tipo de reação foi categorizado de acordo com as palavras chave na descrição dos pais a respeito das reações da criança. Os dados finais da análise incluíram 1096 crianças.
           Baseados nas reações que os próprios filhos apresentaram, os pais confirmaram a consciência da gagueira em 802 crianças (73,2%) e não constataram essa consciência em 294 crianças (26,8%).           
          Vemos a seguir os diferentes sinais de consciência de dificuldade de fala/gagueira registrados nas 802 crianças cujos pais relataram consciência da gagueira.

 

 

Tipo de resposta que denota consciência

Número

Porcentagem

Faz um comentário, fala a respeito, pede ajuda (d3, d6)

         418

            37.9%

Atitude, postura (d1, d2)

         287

            26.0%

Irritação, mau-humor (d5)

         261

            23.7%

Sai do local, pára de falar (d2)

           87

              7.8%

Tristeza, choro (d4)

           77

              7.0%

Estalo de desagrado (d5)

           50

              4.5%

Fazer palhaçadas (d7)

           35

              3.2%

Suspirar (d2)

           13

              1.2%

Muito impaciente (d5)

             4

              0.4%

Gagueira deliberada (d7)

             1

              0%

Tabela 2. As indicações “d1” até “d7” se referem às diferentes possibilidades de reações, descritas anteriormente.

 

 

          Na média, cada criança apresentou 1,37 respostas demonstrando consciência (1102 respostas obtidas para 802 crianças). No grupo mais jovem (dois anos de idade) 56,7% das crianças foram classificadas como conscientes. Esta porcentagem aumentou gradualmente para 89,7% no grupo de crianças mais velhas (7 anos de idade).
          A porcentagem de crianças que se tornam mal-humoradas como reação à gagueira e que pedem ajuda ou fazem comentários a respeito aumentou com a idade. Em contraste, respostas como parar de falar e sair da situação diminuiu conforme aumentava a idade. Não foi encontrada relação clara entre a idade e tristeza/atitudes ante a gagueira.  
          A idade do início da gagueira foi relatada em 1073 crianças. Na média esta idade foi de 40,3 meses (SD = 12,3). O valor médio foi de 36 meses. Os resultados sugerem que a consciência é relatada pelos pais mais frequentemente em relação às crianças que começam a gaguejar em uma idade maior quando comparadas às crianças que começam a gaguejar em idades menores.   
          A porcentagem de crianças que demonstraram consciência de sua dificuldade da fala variou de acordo com o tempo decorrido desde o surgimento da gagueira. Quase dois terços das 306 crianças com um tempo relativamente curto (0 a 4 meses) desde o surgimento da gagueira, demonstraram consciência. A partir daí, a consciência aumenta gradualmente com o aumento do tempo transcorrido. Entre as crianças com tempo entre 5 e 11 meses do surgimento da gagueira, 73,4% demonstravam consciência. Com tempo de surgimento entre 12 e 21 meses, 75,8% se mostravam conscientes. Com 22 meses ou mais, 83,8% foram consideradas conscientes.

 

 

 Tempo transcorrido desde o surgimento da gagueira

         % de crianças que demonstraram consciência

0 a 4 meses

66,6%

5 a 11 meses

73,4%

12 a 21 meses

75,8%

22 meses ou mais

83,0%

Tabela 3. Consciência da dificuldade de fala em relação ao tempo transcorrido desde o surgimento da gagueira

 

          A consciência da dificuldade de fala/disfluência é relatada para 73,7% dos 828 participantes do sexo masculino e para 71,6% das 268 crianças do sexo feminino. Não há diferenças estatisticamente significantes entre os gêneros relacionados à consciência. Não foi encontrada diferença significativa para a severidade da gagueira quando comparados meninos e meninas. Não foi observado efeito da interação entre idade e gênero em relação aos escores de severidade da gagueira. Em relação ao tipo de resposta, a única diferença entre meninos e meninas foi que os meninos mostraram um maior número de respostas de mau humor.      
          Crianças cujos pais consideraram que elas tinham consciência, apresentaram maior severidade de gagueira em comparação com as crianças sem relato de consciência. Esse achado foi observado em todas as idades pesquisadas.        
          No grupo de crianças que os pais relataram observar consciência, nenhuma diferença significativa foi observada entre as faixas etárias no que se refere aos graus de severidade.

 

            Os autores alertam para o fato de que, se os pais apenas observaram reações não verbais à gagueira, deve-se tomar cuidado ao interpretar essas reações como consciência da gagueira. Apesar de todo cuidado tomado, permanece o risco de superestimar a consciência da criança. Por outro lado, uma criança pode estar consciente a respeito da gagueira, sem expressar isso em seu comportamento, havendo então o risco de subestimar a consciência da gagueira.

 

            Considerando essas limitações, o estudo chegou às seguintes conclusões:

 

a)    a maioria das crianças do presente estudo foi considerada por seus pais, como sendo conscientes de suas dificuldades de fala/gagueira. Em média, 75,1% das crianças apresentaram uma resposta associada à gagueira. Esta percentagem aumentou gradualmente para crianças entre 2 e 7 anos, de 56,7% na faixa etária inferior para 89,7% na faixa superior.

 

b)   para cerca de 42% das 802 crianças consideradas conscientes da gagueira foram obtidos dois tipos diferentes de respostas, enquanto para cerca de 36,5% até 3 diferentes tipos de respostas foram registradas.

 

c)  as respostas mais frequentemente relatadas pelos pais foram: faz comentário/pede ajuda, atitude/postura, irritação, tristeza/choro e pára de falar/sai do local. (veja a tabela 2)

 

d)   o tipo de resposta variou com a idade. Com o aumento da idade, mais crianças ficaram irritadas e mais crianças pediram ajuda ou fizeram comentário sobre sua fala. Parar de falar e sair do local diminui com o aumento da idade.

 

e)    as crianças que começaram a gaguejar mais tardiamente demonstraram maior conscientização em relação às crianças que começaram a gaguejar em uma idade menor. Aparentemente, há um aumento de consciência significativo com o tempo decorrido desde o início da dificuldade, mas esse efeito não se mantém quando controlado em relação à idade cronológica.

 

f)     não foram observadas diferenças entre os gêneros quanto ao número de crianças com consciência da gagueira.

 

g)   foi encontrada relação significativa entre a gravidade da gagueira e a consciência da mesma. Crianças que gaguejam e que foram consideradas conscientes de sua dificuldade de fala/gagueira, têm uma maior severidade média da gagueira, quando comparadas às crianças que não estão conscientes da sua dificuldade de fala/gagueira. Este achado foi encontrado em cada grupo de idade entre 2 e 7 anos de idade. Aparentemente, o relato dos pais a respeito da consciência da criança sobre a gagueira aumenta com a idade e está associada com a gravidade da patologia observada pelo terapeuta. Uma maior severidade da gagueira está associada a uma maior frequência de reações da criança à fala disfluente/gaguejada. No entanto, os pais observaram reações tanto no grupo de crianças sensibilizadas, como no grupo não-sensibilizado. Estes achados sugerem que uma maior gravidade da gagueira provoca mais facilmente reações na criança. Pode-se especular que, em caso de uma menor severidade da gagueira associada à consciência, a capacidade de percepção e sensibilidade da criança pode desempenhar um papel importante.       

          Talvez esses achados sugiram que uma gagueira mais severa, favoreça a consciência. Por outro lado, uma possibilidade diferente é que estar consciente poderia favorecer uma gagueira mais intensa. É possível que os comportamentos de evitação e luta contra a gagueira sejam estimulados pela consciência. Os presentes achados sobre consciência associada à severidade da gagueira não indica a direção da relação entre elas, nem qualquer causalidade.
          Yairi e Ambrósio (2005) mencionaram que a consciência de uma criança que gagueja sobre sua dificuldade de fala é levada em consideração na decisão de iniciar terapia. Clinicamente, a consciência é tida como um previsor de uma evolução negativa da gagueira, embora não existam dados disponíveis para dar suporte a essa previsão. Além disso, ainda outros fatores podem estar associados com a previsão de persistência ou a recuperação não assistida de gagueira, por exemplo, o gênero. No entanto, as conclusões desse estudo sugerem que a consciência está associada com a severidade da gagueira e a idade. Além disso, nossos dados também revelam que comportamentos como, ficar irritado com a fala, fazer comentários e pedir ajuda aumentam com a idade. Se o tratamento pode prevenir ou reduzir tais evoluções, a decisão de oferecê-lo pode ser respaldada em parte pela observação de consciência de uma criança. Além disso, os dados atuais parecem sugerir que a consciência em crianças mais velhas pode resultar em um comportamento de enfrentamento positivo, como pedir ajuda, o que pode também ser o resultado do tratamento.  

 

Conclusão:

           A maioria das crianças que gaguejam - até mesmo crianças bem pequenas - parece estar ciente de sua dificuldade de fala/gagueira conforme observações dos pais a respeito de  suas inequívocas respostas verbais e não-verbais em relação à gagueira. Em comparação com alguns outros estudos sobre essa consciência, o percentual de crianças com consciência no presente estudo é muito superior. O tipo de expressão da consciência se modifica com a idade. Mais crianças se mostram irritadas e mais crianças pedem ajuda ou fazem comentários conforme a idade aumenta. Respostas de parar de falar/sair da situação diminuem com o aumento da idade.                 
           A idade cronológica, a idade de início e a severidade da gagueira parecem estar significativamente relacionadas com a consciência. A tendência dos resultados para este grupo de crianças nativas holandesas que gaguejam parece similar aos achados para as crianças nativas inglesas que gaguejam.

 

Comentários sobre a síntese realizada:     
          Durante muito tempo a atuação fonoaudiológica foi evitada, no que se refere às rupturas de fala das crianças, baseada na teoria vigente na época, que dizia que qualquer interferência na fala infantil traria prejuízos consideráveis, propiciando o surgimento da gagueira.      
          O aprofundamento dos conhecimentos, tanto na área das Neurociências como na própria Fonoaudiologia nos demonstraram que as crianças têm como particularidade individual, maior ou menor propensão a apresentar rupturas em sua fala e que interferências adequadas propiciam a evolução benigna do quadro.          
          Havia anteriormente um extremo cuidado de não tocar no assunto relacionado a essas rupturas. Essa atitude foi tão intensa que apresentou efeitos adversos, qual seja, a chamada conspiração do silêncio, na qual fingia-se que nada estava acontecendo e a criança em questão não tinha como dar sentido às suas percepções sobre sua fala.                  
         Relatos de pacientes adultos já nos alertavam para o fato de que suas lembranças de gagueira vinham de idades muito precoces. O presente estudo nos mostra como crianças extremamente pequenas efetivamente dão sinais de que têm consciência dos entraves que constatam na fluência de sua fala. Felizmente, nos dias atuais temos condições de responder a isso de maneira adequada.