Quando o objetivo é aprimorar a fluência, a percepção inicial é a de que o trabalho fonoaudiológico com adultos é menos promissor do que o efetuado com as crianças.
Isto em geral é um fato e temos várias razões para tal. O adulto que gagueja, obviamente já passou da fase de remissão espontânea, ou seja, já não tem em mãos a possibilidade de deixar de gaguejar devido a uma recuperação natural. Além disto, toda uma existência de comunicação com fala rompida, já criou automatismos mais rígidos e mais difíceis de serem modificados.
Precisamos ainda levar em conta que anos de vivência com esta dificuldade sem dúvida trouxeram consequências no modo de percepção de suas habilidades e possibilidades de falar e, em muitos casos, esta percepção contaminou o modo como a pessoa se avalia, muitas vezes sentindo-se incapaz de realizar qualquer atividade que necessite de comunicação oral. Pode também ter surgido a noção de ser incapacitado para inúmeras outras frentes de atuação, mesmo as que não dependem da fala. Alguns, em decorrência disto tudo, reduziram muito seus contatos, evitando correr o risco de precisarem utilizar sua fala e se frustrarem com os resultados. Outros, embora mantenham seus relacionamentos, se torturam na busca da palavra que sentem que conseguirão falar, enquanto evitam outras que se tornam verdadeiras ameaças de desestruturação de fala.
Toda essa autoproteção, embora compreensível, tem como efeito uma complicação a mais: sem este treino rotineiro de utilização de fala ou de determinadas palavras, de enfrentamento de situações, tudo se torna ainda menos familiar, ainda mais difícil e embaraçoso.
O desconhecimento da sociedade em geral sobre a questão da gagueira só complica mais a situação de quem gagueja. O fato de que muitas pessoas considerem gagueira como algo engraçado - embora apenas denote ignorância a respeito desta dificuldade - perturba extremamente seu portador. A pouca experiência de muitos fonoaudiólogos com a terapia de gagueira foi um dos fatores que prejudicaram a pessoa que gagueja, no sentido de não fornecer o que o indivíduo realmente necessita e, deste modo, aumentando a eventual descrença em sua possibilidade de melhora. É preciso ainda acrescentar a questão de que os conhecimentos mais fundamentados sobre gagueira são recentes, dependeram de avanços que só se tornaram viáveis com o desenvolver da tecnologia e datam de poucas décadas.
Deste modo, é frequente recebermos pessoas que buscam terapia e que, além de terem uma dificuldade constatada de fluência, apresentam restrição significativa de sua liberdade pessoal, limitações em suas possibilidades de buscar por seus objetivos, tanto no campo profissional, como afetivo, familiar ou até mesmo de lazer. Encontram-se reclusos, presos por barreiras intangíveis.
Cada um tem seu momento de despertar e definir para si mesmo que necessita ampliar seu espaço de vida, que já não aceita mais para si esta submissão a um transtorno que o amordaça.
É preciso um impulso de coragem para decidir quebrar esta prisão. Buscar terapia é um processo difícil para a maioria, seja por tentativa de evitar tocar na ferida que tanto dói, seja por preocupação com o investimento financeiro, seja por descrédito em sua própria possibilidade de superação ou mesmo negação do distúrbio que apresenta, o que acomoda o indivíduo à situação atual, que embora incômoda, é familiar e não exige os esforços implícitos a qualquer mudança.
Tudo isto, sem contar, que a ideia de uma cura milagrosa, que haverá de surgir inesperadamente, sempre costuma perseguir o ser humano e o deixa à deriva, à mercê de tratamentos pouco éticos que prometem resolução imediata de suas dificuldades.
Com frequência, recebemos solicitações de "exercícios para gagueira". Isto porque existe na imaginação das pessoas a ideia de que alguns poucos exercícios podem resolver definitivamente a questão. Ou então temos a busca por "tratamento para gagueira". Este termo demonstra que persiste uma visão médica a respeito da maneira que se processa a resolução da gagueira e que para que tal aconteça, haverá de ter um "tratamento", de modo que ocorra a "cura". Estas ideias eram aceitas até alguns anos atrás.Hoje, com a evolução dos conhecimentos a respeito, falar em "cura" beira o charlatanismo e tem sido vividamente combatido, inclusive por entidades internacionais como a British Stammering Association (Associação Britânica de Gagueira) [1]
A terapia fonoaudiológica, não sendo mágica e nem se propondo a isto, é um caminho de descobertas pessoais que, muitas vezes, extrapola em muito a fala propriamente dita: descobrir como é o processo de comunicação, como lidar com os mecanismos de fala de um modo mais efetivo e como se fortalecer para estar inteiro, resgatando, usufruindo e deixando transparecer seu valor pessoal. Este é o propósito de um processo terapêutico fonoaudiológico, mais fácil para alguns, mais espinhoso para outros, mas sempre recompensador, desde que o indivíduo consiga perceber cada vez mais claramente o que busca, constatando que o verdadeiro trabalho que ocorre está muito além dos exercícios e atividades propostas para que aflorem as possibilidades de fala distensa.
É importante complementar que, se por um lado o adulto já não tem a flexibilidade de uma criança, que lhe permita uma superação mais rápida, mais natural de suas limitações, por outro lado pode ter o firme propósito de buscar pelo que representará uma melhora em sua comunicação. Provavelmente ele já aprendeu, em muitas outras situações de sua vida, a utilizar sua inteligência, persistência e força de vontade para vencer suas dificuldades. Estes fatores podem fazer toda a diferença em um trabalho que se direciona ao alcance de um objetivo e à aceitação de eventuais limitações na possibilidade de atingir os resultados desejados.
UMA VISÃO INTERESSANTE SOBRE GAGUEIRA
Mark Irwin, com formação em Odontologia e especialização em Psicologia, é uma pessoa que gagueja e que esteve por muitos anos em cargo de direção na International Stuttering Association. Escreveu vários artigos sobre gagueira, entre eles "What is stuttering? - defining stuttering from the speaker's viewpoint" [2] (O que é gagueira? Definindo gagueira a partir do ponto de vista do falante). Ou seja, ele busca uma classificação de gagueira do ponto de vista de quem gagueja.
Nesse artigo de 2008, Irwin procura clarear algumas peculiaridades encontradas nas diferentes pessoas que gaguejam e faz a distinção entre gagueira - que pode ser manifesta ou encoberta - e a "síndrome da fala gaguejada", termo proposto por ele. Assim, define que a gagueira pode se manifestar abertamente através das rupturas evidenciáveis na fala do indivíduo, caracterizada por repetições, prolongamentos e bloqueios. Na gagueira encoberta teríamos a incidência de tentativas de ocultar estas rupturas, através de evitação, substituição e circunlóquios. Já na Síndrome da Fala Gaguejada existiriam os sintomas resultantes "da coexistência de gagueira e distúrbio de ansiedade social (fobia social)": comportamentos de gagueira com sensação de pânico e perda de controle, evitação de situações, atitudes de baixa autoconfiança e baixa autoestima e sentimentos de frustração e ansiedade.
Irwin exemplifica os diferentes quadros com uma fala de cada destes tipos e para tal, imagina uma conversa em um barzinho:
- gagueira manifesta: "Eu gggaguejo. Quando eu saio, ddddemora mmmuito para eu pedir uma cccerveja."
- gagueira encoberta: "Eu gggaguejo. Eu peço uísque porque eu não consigo dizer ccerveja."
- síndrome da fala gaguejada: "Eu gggaguejo. Eu fico extremamente envergonhado e frustrado com isto. Eu raramente saio e evito relacionamentos."
Desta maneira, Irwin explica de uma maneira peculiar as marcadas diferenças que encontramos entre as pessoas que gaguejam, como quando constatamos que uma pessoa com gagueira manifesta muito severa pode se perturbar menos com sua fala do que outra com gagueira manifesta levíssima, mas que apresente um extremado nível de controle sobre sua fala.
Na prática terapêutica encontraremos muitas variáveis dentro desta classificação simplificadora. No entanto ela nos parece útil para clarear algumas questões básicas. Por exemplo, utilizando sua terminologia podemos verificar que alguns artigos se direcionam mais a um ou outro desses quadros gerais.
Assim, embora concordando plenamente com Jackson, Quesal e Yaruss no entendimento de que gagueira normalmente extrapola - e muito - as rupturas da fala, podemos avaliar que o belo e intrigante texto que eles redigiram se refere mais diretamente à "síndrome da fala gaguejada". Verifique, acessando aqui a tradução do texto “What is stuttering: Revisited” (O que é gagueira: Revisitação).
UMA MENSAGEM DE VAN RIPER
Charles Van Riper foi e continua sendo um dos estudiosos de maior destaque na área da gagueira. Norte-americano, falecido em 1994 aos 88 anos dedicou toda sua vida ao conhecimento deste distúrbio de fluência. Deixou-nos vários livros nos quais expôs o resultado de suas pesquisas e estudos, associados à sua prática clínica e vivência pessoal com a gagueira e o fez com a adição de algo que falta a muitos outros autores: sentimento.
Albert Murphy tem um artigo sobre ele, denominado "The Joyous Pathfinder: Charles Van Riper". [3] Esse título, tão adequado, poderia ser traduzido por "O alegre pioneiro" ou "O jovial descobridor" e ainda "O jubiloso guia". Mas, sempre gostei de pensar em uma tradução mais pessoal e entender "pathfinder" como "o achador de caminhos". Finalmente encontrei no The Free Dictionary[4] uma definição de meu agrado para essa palavra: "a person who makes or finds a way, esp through unexplored areas or fields of knowledge" (uma pessoa que cria ou encontra um caminho, especialmente através de áreas ou campos inexplorados do conhecimento). Sem dúvida, essa longa definição não seria adequada ao título de um artigo, mas define claramente Charles Van Riper.
Em seus últimos anos de vida, Van Riper deixou um pequeno texto, voltado para os leigos, no qual é possível observar sua capacidade de transmitir informações de modo inesquecível, utilizando-se, neste caso, de um fato ocorrido em sua vida particular. Veja aqui.
[1] https://stamma.org/
[2] http://www.mnsu.edu/comdis/isad11/papers/irwin11.html
[3] http://www.mnsu.edu/comdis/kuster/vanriper/murphy.html
[4] http://www.thefreedictionary.com/
Informações mais gerais sobre este tópico em GAGUEIRA.